Serão quatro os temas LGBT relevantes no ano que se avizinha. E todos herança de 2016, se não mais antigos:

  1. triagem de dadores de sangue homossexuais;
  2. listas de espera para Procriação Medicamente Assistida;
  3. revisão da Lei da Identidade de Género;
  4. venda do medicamento Truvada.

Tudo indica que a agenda do movimento social LGBT português continuará a ser marcada, à semelhança dos últimos anos, por reivindicações em torno de mudanças legislativas. Será, pois, no campo jurídico que associações e colectivos activistas farão o seu caminho, insistindo numa dinâmica que em 2016 começou a dar sinais de exaustão.

No contexto de um poder executivo sustentado, em termos parlamentares, por três partidos à esquerda, o movimento LGBT viveu 2016 sob o signo da reivindicação velada, sem alarido público, o que constituiu novidade. O “lobbying” foi menos mediático do que de bastidores. O casamento histórico (verídico ou não) entre certa ideologia de esquerda e a defesa de minorias continuará a não permitir muito barulho em torno das reivindicações.

De resto, à medida que a Europa política caminha para um conservadorismo inaudito nas últimas décadas, e o mesmo se diga em relação aos EUA, a defesa de direitos das pessoas LGBT parece também ela acostar-se a uma retórica integrista ou intolerante, o que em Portugal já começou a ser criticado por opinion makers da imprensa generalista.

1. Sangue

A triagem de dadores de sangue homo e bissexuais só aparentemente é um assunto encerrado. É de crer que volte a estar sob os holofotes em 2017.

Num volte-face, a associação ILGA Portugal denunciou nos últimos dias de 2016 que a norma clínica da Direcção Geral da Saúde (DGS) que autoriza a dádiva por homo e bissexuais não está, afinal, a ser respeitada pelos serviços de recolha de sangue. “Os questionários que são feitos aos dadores ainda não foram actualizados e continuam a ter uma pergunta sobre a orientação sexual”, denunciou a ILGA na TSF. O tema terá de transitar para o novo ano.

Foi em Setembro de 2016 que a DGS publicou uma norma de orientação clínica que pôs fim à proibição total de dádiva de sangue por homo e bissexuais, impondo novos prazos de suspensão destes dadores. Na prática, a proibição deixou de ser total e passou a parcial (12 ou seis meses).

Outra questão que poderá renascer em 2017 relaciona-se com as reticências do Bloco de Esquerda quanto à norma da DGS. O partido não gostou que a proibição se mantivesse, mesmo que parcial, mas tem estado em silêncio nos últimos meses. O deputado Moisés Ferreira considerou a norma um “passo claramente insuficiente”.

2. PMA

A regulamentação da Procriação Medicamente Assistida (PMA) foi publicada em Diário da República a 29 de Dezembro, depois de meses de incerteza. A lei da PMA passou a produzir efeitos e qualquer mulher pode agora recorrer a técnicas de fertilização em centros autorizados, independentemente de ser ou não infértil e de estar ou não casada ou unida de facto, o que pela primeira vez abre o acesso a mulheres lésbicas.

É de prever quem em 2017 as listas de espera causem alguma polémica. Ouvido na Assembleia da República, em Novembro, o médico Carlos Calhaz, do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida (entidade reguladora), não poderia ter sido mais claro: “Não temos capacidade de resposta instalada para o que vai ser solicitado quando entrar em vigor prático a legislação aprovada há uns meses. Isto não tem a ver com falta de esforço, mas com constrangimentos, porque custa dinheiro.”

A lei da PMA foi aprovada em Maio pela Assembleia da República e saiu em Diário da República a 20 de Junho. O Governo atrasou-se na regulamentação (que deveria ter saído até 20 de Outubro e saiu a 17 de Novembro).

De acordo com o Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida, a nova lei da PMA contraria orientações da Organização Mundial da Saúde para que a inseminação artificial esteja fora do conceito de PMA. Sobre este aspecto, nem esquerda nem direita teceram até hoje qualquer considerando. Vão fazê-lo no próximo ano?

3. Identidade de género

Tem sido um calcanhar de Aquiles. A alteração da Lei da Identidade de Género, de 2011, marca passo na Assembleia da República. A secretária de Estado para a Cidadania e a Igualdade garantiu em Outubro que o Governo terá pronta até Janeiro de 2017 uma proposta de revisão.

Catarina Marcelino disse também que o executivo e o Bloco de Esquerda têm um “acordo tácito” para que as alterações sejam debatidas ao mesmo tempo na Assembleia da República “depois do fim” de 2016.

O Bloco apresentou em Maio um projecto-de-lei de “autodeterminação de género”. O partido Pessoas Animais Natureza (PAN) revelou um projecto próprio em Outubro. O texto do Governo é ainda uma incógnita.

Em traços gerais, apesar de algumas divergências, ambas as propostas conhecidas pretendem autorizar a mudança de sexo no Registo Civil sem que as pessoas transgénero tenham de fazer tratamentos ou intervenções cirúrgicas, dispensando-se também quaisquer pareceres médicos.

O projecto do Bloco prevê ainda o fim das intervenções cirúrgicas e dos tratamentos em bebés com características intersexuais, o que é recomendado pelo Conselho da Europa. O texto do PAN é omisso neste particular.

4. Profilaxia pré-exposição (PrEP)

Sairá das redes sociais, e de esporádicos salpicos para a comunicação social, a campanha que defende a introdução no mercado português da droga Truvada, cuja toma diária alegadamente “diminui a probabilidade de infecção” por VIH? Fica a interrogação. Em 2016, a campanha a favor da profilaxia pré-exposição (ou PrEP, na sigla em inglês) foi liderada pelo GAT (Grupo de Activistas em Tratamentos), em particular pelo médico Bruno Maia.

A Comissão Europeia aprovou em Agosto a comercialização do Truvada na União Europeia, sujeitando-a a regulamentação própria em cada estado-membro.

Aparentemente, a argumentação pró-PrEP evoca os primeiros tempos da epidemia da sida nos EUA, quando grupos da sociedade civil exigiam das autoridades públicas e da indústria farmacêutica um medicamento que combatesse a doença (o que levou à comercialização do AZT pela primeira vez em 1987).

Mas em 2017 exigir ao Estado que autorize e comparticipe o Truvada parece implicar um favorecimento da indústria e não o contrário.

Num debate público organizado em Maio pelo site Dezanove.pt a deputada pelo Partido Socialista Isabel Moreira disse que estava a “trabalhar nesse dossier com organizações não governamentais”. E revelou a linha de argumentação que vai ser seguida.

“A luta pela possibilidade de acesso à PrEP vai ser, do ponto de vista das resistências e da pressão das indústrias farmacêuticas por causa dos custos, muito parecida com a luta pelo acesso aos primeiros medicamentos retrovirais [sic]”, afirmou Isabel Moreira (vídeo nesta ligação).

Bruno Horta