Três conclusões podem ser retiradas da audição pública que a Assembleia da República organizou na terça-feira, 9 de Janeiro, relativa às propostas de revisão da Lei da Identidade de Género de 2011.

Primeira: a lei de 2011 tem sido genericamente considerada desadequada e as alterações correm o risco de seguir o mesmo caminho. Foram criticadas por alguns grupos trans porque não contemplam a escolha de um “terceiro género” no Registo Civil (ou “marcador não-binário”). A proposta do Governo também mereceu reparo por não permitir a mudança de nome e sexo no Registo Civil antes dos 16 anos.

Segunda: a activista Júlia Mendes Pereira, da associação Acção pela Identidade (API), continua a ser, nesta matéria, a voz mais esclarecida. E continua também, como demonstrou em Março de 2016, a não reconhecer legitimidade à ILGA Portugal (e outras associações na mesma órbita, como a Rede Ex Aequo e a Amplos) para ser porta-voz das pessoas trans. O movimento social LGBT tem diversas sensibilidades e opiniões, ainda que o grande público nem sempre se aperceba disso.

Terceira: a deputada Isabel Moreira, do Partido Socialista, insiste em usar as minorias sexuais e de género como arma de arremesso política, pretendendo enquadrar estes temas nas disputas entre a esquerda e a direita parlamentares, como se não fosse possível falar de direitos humanos fora da politiquice à portuguesa.

Durante três horas, foram ouvidas em conjunto oito associações LGBT portuguesas. Os trabalhos tiveram condução da deputada socialista Elza Pais e decorreram no quadro da revisão da Lei da Identidade de Género de 2011. Uma proposta do Governo e dois projectos do Bloco de Esquerda e do PAN estão a ser trabalhados pela Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos Liberdade e Garantias da Assembleia da República. A audição fez parte desse processo legislativo. E outras iniciativas se seguirão, informou Elza Pais. “Através destas audições seguramente vão ser introduzidos contributos para melhorar as propostas”, referiu.

O que está em causa

A mudança de nome e sexo no Registo Civil está hoje prevista na Lei da Identidade de Género de 2011. O projecto do Bloco de Esquerda (apresentado em Maio de 2016) e a proposta do Governo (em  Maio de 2017) prevêem a mudança de nome e sexo no Registo Civil sem necessidade de diagnóstico de “disforia de género” ou qualquer intervenção de técnicos de saúde, o que representa a principal novidade face à lei de 2011. O Bloco quer que a mudança possa ser pedida a partir dos 16 anos (pelo visado) ou até antes (por representante legal ou com intervenção de autoridade pública). O Governo fixa a idade mínima nos 18 anos (visado) ou 16 anos (por representante legal), mas nunca antes.

Ambas as propostas — a do Bloco indirectamente, a do Governo de forma explícita — estabelecem também o fim das intervenções cirúrgicas e dos tratamentos em bebés com características intersexuais (hermafroditismo e outras alterações do desenvolvimento sexual). A ser aprovada nos termos propostos, será a primeira lei portuguesa sobre esta realidade.

Também o PAN apresentou um projecto sobre a matéria (em Outubro de 2016), o qual não refere directa ou indirectamente os intersexuais, prevendo apenas, para os transgénero, o fim da obrigatoriedade de um relatório médico que comprove o diagnóstico de perturbação de identidade de género.

O que foi dito

As oito associações presentes na audição de 9 de JaneiroAMPLOS (Associação de Mães e Pais pela Liberdade de Orientação Sexual), ILGA Portugal, Rede Ex AequoGIS (Centro de Respostas às Populações LGBT), API (Acção Pela Identidade), Não te Prives, Panteras Rosa e TransMissão (Associação Trans e Não-Binária) — mostraram-se genericamente contra um pormenor da proposta do Governo: a proibição de alteração do sexo e do nome no Registo Civil antes dos 16 anos.

Particularmente importante foi a intervenção de Alexandra Teixeira, da associação Amplos, mãe de um adolescente transgénero que “desde os quatro anos de idade já verbalizava que queria ser trans”. “Desde cedo, ele sempre se sentiu menino e sempre lhe demos espaço para ser quem é.” Alexandra Teixeira criticou a proposta do Governo. “Porquê um limite mínimo de idade? O meu filho, muito antes dos 16 anos já sabia quem é.”

Júlia Mendes Pereira, da API, disse que só a associação que ela representa tem legitimidade para falar em nome da população trans e intersexual, e criticou a ILGA por ter introduzido recentemente o termo “intersexo” na designação do nome da associação (ILGA Portugal – Intervenção Lésbica, Gay, Bissexual, Trans e Intersexo; desde Março de 2017).

“Somos a única organização a nível nacional que pensa e trabalha estas questões na primeira pessoa, tendo os únicos activistas sociais intersexo visíveis no nosso país. Desde logo, vemos como vitória que os direitos intersexo tenham entrado definitivamente no movimento LGBT nos últimos anos. Algumas organizações alteram o nome, para incluir o ‘i'”, disse.

Um representante da ILGA, presente na audição, não deixou Júlia Mendes Pereira sem resposta. “Somos organizações de direitos humanos e todas trabalhamos em função da dignidade e  do bem-estar das pessoas”, comentou.

A activista da API acrescentou que “em relação às pessoas trans, todos os projectos cumprem as reivindicações de base”, mas “não representam, ainda a mudança de paradigma necessária e urgente”. Deixou uma nota, subscrita pela TransMissão: a “gritante ausência”,  nas propostas em causa, de referências a pessoas de “género fluido”, o que poderia acontecer, por exemplo, através da menção a “terceiro género” ou “género neutro” nos formulários do Registo Civil.

A deputada Isabel Moreira, representante socialista, mostrou-se muito bem informada sobre o tema, mas esteve sempre à procura de uma disputa esquerda-direita, o que perturbou a troca de argumentos e constituiu, como sempre, uma tentativa de indexar questões de direitos humanos ao quadro ideológico de partidos políticos.

Defendeu a idade mínima de 16 anos para a mudança de sexo e nome. “É uma idade arbitrária, é sempre, assim como a idade para casar. É uma idade que tem a ver com o que tem sido o encaminhamento da legislação civil para as pessoas se capacitarem aos diversos níveis.”

Afirmou que a proposta do Governo “não acolhe claramente a questão do não-binário” porque “pelos estudos que temos, parece-nos que é uma reclamação de uma ou outra associação, mas não é uma reclamação das pessoas e, por vezes, até pode levar a discriminações”.

Captura de Ecrã (76)
Deputada Elza Pais conduziu a audição pública

Júlia Mendes Pereira sugeriu a criação de uma lei autónoma relativa às pessoas intersexuais. “Há um erro de base neste projectos ao assumirem que os direitos trans e os direitos intersexo possam ser resolvidos com uma lei conjunta. Claramente, nota-se que existe na proposta do Governo uma confusão muito grande entre o que são os direitos das pessoas trans e os direitos das pessoas intersexo, o que cria confusão e já começou a ter eco, nomeadamente na Ordem dos Médicos. Claramente, eles não percebem o que está na proposta e estão prontos para perpetuarem as cirurgias em bebés intersexo, considerando que intersexo não abrange os bebés que têm sido operados compulsoriamente.”

Bloco, PCP e CDS fizeram-se representar na audição, respectivamente, pelas deputadas Sandra Cunha, Rita Rato e Vânia Dia da Silva. Segundo informou Elza Pais, o PAN e o PSD não estiveram presentes por motivos de agenda e de saúde dos respectivos deputados com assento na comissão.

Vânia Dias da Silva criticou a “superioridade moral” com que partidos de esquerda se apresentam na discussão destes temas. Recebeu de Margarida Faria, presidente da Amplos, um comentário cortante: “Superioridade é a de partidos como o seu que levantam questões com grande desconhecimento.” Margarida Faria garantiu que a Amplos convidou por diversas vezes representantes do CDS e do PSD para assistirem a iniciativas da associação e que estes nunca se mostraram disponíveis.